quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O Sentido - A Reflexão

Há duas coisas que deveríamos saber quando nascemos, ou quem sabe deveríamos deixar de esquecer: a passividade do natural frente a natureza de nossas vontades, e o grito revoltoso quando somos arrancados de nossos úteros. A sombra da dúvida enfrenta os homens no momento, julgado por si próprios, indesejado, como a ferida de saber que todo aquele sangue envolvendo-lhe o corpo não é seu, mas é o sacrifício de outrem cercando-lhe com suas próprias tripas rubras. Nossos cabelos crescem de forma desatinada, e também nossos dentes, em um vai-e-volta incontrolável rumo a maturidade. São fragmentos tão singelos e belos ao olhar materno, e nós, ladrões de seus olhos e línguas, desatinamos em um tempo a adorar sem perceber. E tão fraca é nossa sensibilidade, seres arrancados por essência, teimamos a ter em nossa memória, tida a mais esquecer do que lembrar, a transformar toda a distância de nossas mãos ao copo de leite, o copo, a vasilha, a empresa de vasilhas, e a sobriedade de seus líderes, tão naturais como a revolução de nossos corpos e a volúpia de nossas convicções. A senhora olhava com serenidade a rua asfaltada, a multidão encarniçada como urubus em volta de um cadáver observando o céu, afastando de sua contemplação misericordiosa apenas o barulho das sirenes policiais ao longe, assim sendo, amaldiçoava tudo que é novo, contemporâneo à sua visão decrépita, logo então fecha a janela contra os tiros, fecha a roupa contra o frio, fecha as portas contra as visitas, partindo então ao seu ritual diário... o remédio contra as dores e a televisão contra os pensamentos. Tudo tão sinjelo e tão atual. O horror de tudo isso é o ato de se abrir. Abria as pernas aos jovens falidos, abria a tela para a persuasão e as calçolas ao banho de sabonete de promessas cândidas e necessários, não podendo esquecer do shampoo de fazer cabelos brilhantes e falsificadores de suas centenas de anos. O grito ouvido na rua foi apenas a resposta, ainda vívida, de muitos aqueles que se mostraram tão indesejosos de seus desejos, assim pouco silenciosos aos recôndidos fulgores e reflexões medicados por si próprios como patológicos, ao fervor do chumbo sobre sua fragilidade, gritou de horror e medo, e se pudesse, comia cada centímetro de pele de seu executor. Poderíamos, ó ave noturna, colocar em cada homem uma sensibilidade maior do que os tampões herméticos dos morcegos... perceberíam em cada matéria fora de seu "eu" a anormalidade, normalidade de suas infâncias. Sei como é, criaram antes de nós deus, a família, o trabalho e o entretenimento barato, porém não custa nada passar as madrugadas discutindo com corvos afulgentados por suas desgraças.

Um comentário:

Larissa_M disse...

Isso que eu chamaria de "reflexão"!
Ficou perfeito o texto e gostei da profundidade dele, do sentimento estranho que parece causar ao ler percebendo que aquilo tudo é verdade!
Gostei muito.