terça-feira, 9 de agosto de 2011

O Açucar

Um dia sofremos do medo de realizarmos nossos desejos. Encaramos a vida com um olhar diferente, a seguramos pelo braço e aproximamos nossos lábios... e então bruscamente ela vem ao seu encontro, entregue, disposta e é, bem aí, que você se afasta, seu coração decresce o bombardeio anterior e você se faz a pergunta "o que estou fazendo?". Havia uma piada na qual contava de um cristão que ao chegar às portas do céu encontra deus e questiona: "o senhor realmente existe?". Caminhamos lentamente pelas ladeiras, forçamos toda nossa certeza verborrágica sobre nossos reais desejos, entretanto, como podemos desejar algo - como o destino manifesto do produto à mercadoria - se o próprio desejo é a ambição de não mais o ter? Nada é realmente fácil, nem cuidar das fezes animais de nosso enorme quintal, nem o amanhecer cedo do trabalho. Talvez o maior empecilho seja o amor, e ele é a grande muralha entre a realização e a não-realização... mas por que nos entregamos a ele? Porque não queremos realizar tais pressupostos individualmente estabelecidos nos termos mais íntimos da nossa cognição. Não desejamos realizar nem o próprio amor, por isso amamos os gatos, pois sabemos que é o sentimento mais assimétrico nas configurações mais bem formuladas do que não é o amor - não há amor sem linguagem, nem homens, nem perdas.

terça-feira, 14 de junho de 2011

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U

m grito estridente, de sobressalto, rompe o monofonia das descargas e dos canos enferrujadas da velha construção. Era um urro de uma velha e vinha de alguns andares acima, e logo o operário que assistia a um programa enlatado na televisão corre pelas escadas espirais chegando um pouco cansado até o apartamento de onde adivinha o terror. Viu uma porta entreaberta, mas antes de qualquer ação acendeu um cigarro, coçou a barba, segurou sua chave inglesa de estimação, caminhou lentamente até o portal e perguntou em voz alta:

-- Está tudo bem aí?

Ouvia-se apenas um choramingar em um dos cômodos do apartamento. Continuou lentamente averiguando a sala até chegar ao único quarto, onde observou um quadro barroco de sutil beleza: uma velha estava ajoelhada de cabeça baixa com as mãos tampando os olhos um pouco atrás de um cadáver ensanguentado e mal cheiroso; sobre ele havia urubu bicando suas órbitas oculares, a pouco fugido de uma gaiola ao lado. Com certa calma e desviando das poças de sangue chegou até a velha e questionou:

-- O que aconteceu aqui? – Deixando sua arma-ferramenta cair.

-- Alguém matou o pobre poeta... Tinha tantos problemas, seus pagamentos eram tão certos; sua miséria tão evidente; via ele todos os dias; e pagava todo dia primeiro; alguém matou o homem sem alma, desligou sua fábrica de tormentos; alguns dizem que ele vendeu sua alma para a caneta, mas ninguém nunca viu o que ele escrevia; meu Deus! Mataram-no para roubar seus escritos! Meu Deus! - Sussurrava a velha não se preocupando com a presença do operário, de forma um tanto desconexa, choramingava e tentava expressar alguma coisa.

-- Mas não parece que ele se suicidou, senhora? – Pergunta o operário.

-- Jamais faria isso! Um poeta se mataria sem escrever uma carta de despedida? Sem deixar nem ao menos um sonetinho bobo para uma amante ou para seus pais? Nosso mundo não é tão horrendo para um poeta deixar de escrever!

-- Mas qual era o seu nome?

-- Pouca gente ou ninguém sabe o seu nome? Chamarei a polícia e possivelmente será enterrado em uma vala rasa para indigentes. Será este o fim dos poetas? Então o que será de nós? De linguajar tão simples, de modos tão pobres de cultura... Nos deixarão apodrecer sobre a terra na esperança de nos transformarmos em mortos-vivos, para assim continuarmos trabalhando e cobrando alugueis. Faça a ligação enquanto levarei o urubu até meu apartamento.

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S

entado defronte sua mesa ele descobriu então a essencialidade do amor por trás das mais vendidas formas que se expressavam à deriva no mar da sociedade. Seu olhar então fitava o urubu de estimação, sua expressão cativa de todo mau agouro, e a partir de então sabia como era fácil amar seres sem linguagem, na possibilidade sempre volupiosa de projetar nestes animais todo seu horror interno e entender cada grunhido como um enunciado complexo-filosófico mais humano que qualquer humano poderia pronunciar. Sua ave negra é como no poema de Allan Poe, no qual entrara por obra da fortuna (ou não) e pousara sobre o portal fazendo barulhos desesperados enquanto o homem de ciência perguntava onde estaria Lenora, e só se ouvia: nunca mais. Conhecia este poeminha quando capturou o pássaro alimentando do cadáver de seu pai, e lhe mantinha em uma gaiola esperando o insight que estava lhe provendo naquele exato momento. Caminhando a cada segundo para mais próximo de seu abismo mental, tentava assim formar uma metáfora política para o amor, e decide então que o amor seria algo entre o Golpe e a Revolução. A Revolução golpearia o sistema, como o golpe revolucionaria a revolução. Desta relação ingênua, percebe então no amor todas as características conservadoras e progressistas, na tentativa do amante de conciliar a inconciliável assimetria entre a coletividade e a particularidade. Então não se satisfez com a metáfora e volta a fitar o urubu sem nome e aproxima um pouco das grades e sua reflexão chega à luz novamente da linguagem, e vai mais adiante percebendo o amor como um exibicionismo sem frases nem palavras, em um engano da História, da crença cega em investir tanta arte e tantas lágrimas na união cheia de rituais ideológicos que tem como objetivo a operação mais narcisista que o nosso maquinário poderia criar, uma procura pelo sexo, por riquezas ou status, na qual todo falazar cristão entraria com seu propósito esquecendo e omitindo do amor a expressão simbólica da tentativa constante de um monólogo masturbatório de dois personagens inseridos em um romance cavalheiresco idiota. Por um momento ele se calou; com um movimento de cabeça fez um sinal de reprovação e pouco depois pode se ver um sorriso bem na beirada de seus lábios, e parece então uma descoberta. Estes momentos são procedidos por um estrondo que fez jorrar sangue por toda a mesa e manchou assim o papel em branco. Que esquecido coitado, tirou sua própria vida e não se lembrou de elaborar a carta de despedida.

sábado, 9 de abril de 2011

O Luto - A Pureza

Um círculo se conclui. A vida então pode ser vista por completa como uma obra ao seu término, a partir do ponto final que se figura na última linha do livro. Então paramos, durante alguns segundos ou mais, defronte às informações sobre a editora na página findante e questionamos sobre a validade daquelas informações jogadas de forma alucinante, sem um enredo fundamental, e tentamos criar uma linha-mestra na qual explique alguns clímax do texto. Mas nada vem à mente, nada é explicado e toda aquela experiência se torna um trauma, uma ruptura brusca da realidade quando observamos o real explícito em suas conformidades naturais e principalmente sociais. Qual era seu nome? Dalva. Se quiséssemos encontrar alguma genealogia de seu nome, talvez nada achássemos, ou alguma fundamentação na falta de criatividade. Mas poderia ser muito bem um nome vinculado à maior estrela que aponta no céu, e se assim fosse seria algo tão auspicioso, tão profético, que chegaria ao ponto de encher os olhos do escritor de lágrimas. Vivia em um mundo como daqueles que observam tal estrela, pois de fato aquela luz não é uma estrela, é Vênus. A mesma alucinação de dois amantes quando se descobre Dalva no céu, era a vida desta estrela-planeta que nascera sob o julgo da indelicadeza da violência doméstica e da rusticidade do campo, e que de forma prematura abandonou sua condição e fora viver no luxo das cidades grandes sem açoite, contudo limitada pela criação dos filhos do restante do mundo e das criações de seus próprios pensamentos, na qual às vezes um sorriso poderia resumir um contexto melhor enquanto lavava as roupas de seu patrão com sabonete. Em um certo momento se via sem amores, sem expectativas, sem rumo, trancada nas paredes de um manicômio real com sua cabeça afetada pelos piolhos e pelos maltratos dos técnicos da saúde - a cidade servia os seus indivíduos de toda indecência violenta como o mundo rural. Começava a ser humilhada nas ruas pelos fantasmas que não compreendiam sua virgindade casta e lhe chamavam de puta, e nem mesmo as santas perdoavam sua falta de pecados virando seus rostos na programação católica, e haviam mensagens indiretas dos padres, e havia espionagem imperfeita dos apresentadores de televisão enquanto ela tomava banho. Nada disso existia! Aliás, ela existia e convivia com as fantasmagorias mais absurdas que a mente podia criar, a esquizofrenia era real, em uma realidade mais convincente que Vênus para os astrônomos. Chorava, e como chorava. Nunca havia feito nada de errado dentro de qualquer plano de ficção, e lutava com os normais sobre a facticidade de suas ilusões. Se via como uma prostituta hermafrodita enquanto realizava o projeto humano de doçura e bondade. Nestes últimos tempos ouvi que os pais nunca podem enterrar seus filhos. Destarte questiono sobre a possibilidade de alguém se enterrar? Nada mais cruel que uma pessoa ter passado toda sua história na solidão de suas invenções imagéticas, e sua memória estar fadada aos escritos virtuais de um escritor idiota. Não era uma heroína como se faz os políticos quando morrem, mas sim uma pessoa com as raras características de um ser humano.