terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Vida II

Ela me disse simplesmente que não gostava de filmes hollywoodianos. Mas quão difícil é entender, na natureza não intocável das coisas, em que a cinematografia não nascera de uma vertigem religiosa de burgueses inescrupulosos, pura e simplesmente, mas sim é a maximização objetiva de versões não acabadas de nós mesmos, da mediocridade de nossas existências, do fruto proibido achado por debaixo da carne dura e sóbria. Jamais seremos super-homens, minha bela, nem o dos HQs e muito menos o nietzschiano, porém o velho filósofo bigodudo nos ensinara uma lição importante: "torna-te a ti mesmo". E aí que o intelectual chora ao ver o Rei Leão, e não são lágrimas vacantes de uma história cheia de glicose, mas pelo contrário, é o consentimento e o medo da estupidez debaixo da máscara de Kubrick e Antonioni, e vemos a distância de quem somos e quem queremos ser. Em músicas de automóveis recheados de toda normalidade, dos decibéis acima do perceptível, blasfemamos sobre o cotidiano, sobre a pobreza de tudo, e em um breve momento subimos a montanha mágica para olharmos dali a sociedade em chamas. Mas como não se atrever a ser tudo aquilo fechado dentre duas portas e sobre quatro rodas? Como em uma noite chuvosa, como esta, não devemos chorar e umedecer o papel da carta sobre temas tão paupérrimos e vertiginosos... como o cancioneiro pop vomitado pelos uber-altofalantes? No fim fomos tecidos, e tecemos tudo, em uma máquina não tão óbvia, e quissá clara. E desta mediocridade encandecente, nasce em mim a doçura e o sofrimento, de um cão ferido como todos aqueles da cidade velha, e posso agora tornar-me, e portanto lhe desejar.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Vida

E então o médico lhe dissera que seu feto desenvolveria anormalmente e mesmo com pouco tempo de gestação era algo realmente preocupante continuar com aquela investida da linha tênue entre a morte e a vida, da tenacidade de lhe ocorrer um sacrifício sobre a jovialidade materna, ainda de muito tempo para outras gestações e da recuperação de erros irrecuperáveis, sobre a vertigem de um mundo inteiro a lhe servir como mulher e mesmo sobre a volúpia e a libido pregressa das gerações. Contudo, como um estrondo, saiu a correr do hospital atravessando as avenidas em um rumo sem sentido, sem lógica, no luto precipitado de si mesma, já que preferia o óbito ao aborto de sangues correntes, e fundamentalmente, de interromper os planejamentos colocados sobre a pedra da fortuna. Como irei fazer isso? O que é isso dentro de mim, este demônio amável e desgarrável na qual chamara simplesmente de sentimentos doces e belicosos, e então sorriu e enfrentou os deuses dos destinos. Durante quase dois anos passara a viver sobre a égide da dor diária, e em alguns momentos lhe tomava alguns insights, pensava em viver a vida sem formas, sem projetos de se matar por filhos, mas sua ideologia sempre lhe afrontava como resposta: vale a pena, sua mártir! E então por quase dois anos passou-se os segundos a serem contados pelas contrações de uma morte não abortada e não nascente, e durante estes quase dois anos, pensara em viver assim, daquela bizarra forma. Mas então, com as dores que lhe chegara à garganta, pensou em libertar sua morte aprisionada, e pensou que o martírio valeria a pena, a pena da prisão pelo amor. Fora então até um açougueiro, que depois de muita relutância ,cortou aquela mulher exatamente no meio, em uma morte desagradável, horrenda, e para muitos, estúpida. Arrancara do meio de suas entranhas uma moça de 21 anos, falando, escrevendo, pensando, sorrindo, esquecendo, esquecendo, não lembrando, esquecendo... esquecendo. Quando saíra daquela prisão fétida, rubra e esquizofrênica amaldiçoou sua mãe por ter lhe prendido sobre suas vértebras... ainda nua, encontrou alguns homens e se vendeu barato, no preço justo, para ela, daqueles que nascem com vinte e poucos anos, que passam quase dois anos dentro de úteros extensos, e filhas de um martírio idiota.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Demônio - O Encontro

Um demônio descansa em sua oficina. De cabelos grisalhos, seus fundos olhos azuis não são vistos pela penumbra que coloca em seu fronte duas órbitas cheias de vazio e sombras, sendo seus fortes traços de idade as marcas claras de ser ele ali olhando suas ferramentas de mecânico, e também seu nariz italiano e sua boca pequena. Fitava, com o rosto umedecido de lágrimas, alguns martelos e uma chave inglesa... quanto mais suas velhas mãos tentavam alcançar aquelas coisas do ofício, mais o medo lhe tomava, como um tufão levando casas, formigas e ácaros, tremia pela idade e desconforto, como teimava em tentar levar a cabo a missão de tocar seus antigos e recentes fatos, e se alguém olhasse pela janela não concluiria se tentava acariciar ou amaldiçoar, e das primeiras sílabas não passava seus balbuciados, mas aproximava, tinha que conseguir, ora! ora! "Estou próximo da morte / Vivenciara teu mundo de sorte / Ser o menos comum, observei / Da selvageria de errantes, errei / Tocarei eu meu feito recente / Pela idade o medo é demente", e assim não tocou, correu, sem ordem, pulara em seu carro de quase um século, com seus bancos de quase um século, com seu corpo de quase um século. Saíra voando na rapidez dos automóveis de rodas ainda de aros, preciosidade de colecionadores, de seres do abismo uma carruagem, de motor lerdo e barulhento, atravessando o distrito até a cidade. Encontrou então um casal sentado, O que faria sobre a luz do luar / Dois amantes a se amar / Apesar do infortúnio de meu encontro / Agradá-los será meu ponto, apesar da estranheza daqueles dois acostumados a ser francos com uma realidade ofertada, sorriram pela primeira vez naquele dia sem mãos dadas, lhe ofereceram um trago e uma dose enquanto ouviam versos belos e desalmados, como se a boca fosse um livro da pobreza poética de um idoso fantasiado de ingenuidade... se amaram toda esta noite de fortuna inesperada, mas o que na cama questionaram era porque o prazeroso desconhecedor das formas insistia em descrever sua tristeza se rira de gargalhadas improvisadas. Não é fácil ser um demônio com sangue em suas ferramentas, e cativo de seu gênio ordenado.