terça-feira, 14 de junho de 2011

Página 2


U

m grito estridente, de sobressalto, rompe o monofonia das descargas e dos canos enferrujadas da velha construção. Era um urro de uma velha e vinha de alguns andares acima, e logo o operário que assistia a um programa enlatado na televisão corre pelas escadas espirais chegando um pouco cansado até o apartamento de onde adivinha o terror. Viu uma porta entreaberta, mas antes de qualquer ação acendeu um cigarro, coçou a barba, segurou sua chave inglesa de estimação, caminhou lentamente até o portal e perguntou em voz alta:

-- Está tudo bem aí?

Ouvia-se apenas um choramingar em um dos cômodos do apartamento. Continuou lentamente averiguando a sala até chegar ao único quarto, onde observou um quadro barroco de sutil beleza: uma velha estava ajoelhada de cabeça baixa com as mãos tampando os olhos um pouco atrás de um cadáver ensanguentado e mal cheiroso; sobre ele havia urubu bicando suas órbitas oculares, a pouco fugido de uma gaiola ao lado. Com certa calma e desviando das poças de sangue chegou até a velha e questionou:

-- O que aconteceu aqui? – Deixando sua arma-ferramenta cair.

-- Alguém matou o pobre poeta... Tinha tantos problemas, seus pagamentos eram tão certos; sua miséria tão evidente; via ele todos os dias; e pagava todo dia primeiro; alguém matou o homem sem alma, desligou sua fábrica de tormentos; alguns dizem que ele vendeu sua alma para a caneta, mas ninguém nunca viu o que ele escrevia; meu Deus! Mataram-no para roubar seus escritos! Meu Deus! - Sussurrava a velha não se preocupando com a presença do operário, de forma um tanto desconexa, choramingava e tentava expressar alguma coisa.

-- Mas não parece que ele se suicidou, senhora? – Pergunta o operário.

-- Jamais faria isso! Um poeta se mataria sem escrever uma carta de despedida? Sem deixar nem ao menos um sonetinho bobo para uma amante ou para seus pais? Nosso mundo não é tão horrendo para um poeta deixar de escrever!

-- Mas qual era o seu nome?

-- Pouca gente ou ninguém sabe o seu nome? Chamarei a polícia e possivelmente será enterrado em uma vala rasa para indigentes. Será este o fim dos poetas? Então o que será de nós? De linguajar tão simples, de modos tão pobres de cultura... Nos deixarão apodrecer sobre a terra na esperança de nos transformarmos em mortos-vivos, para assim continuarmos trabalhando e cobrando alugueis. Faça a ligação enquanto levarei o urubu até meu apartamento.

Um comentário:

Carlo Retori disse...

fantastico grande homem!!!! realmente fantastico... "vendeu a alam a caneta"

saudações